Janeiro branco e a “resistência” do CFP: uma perspectiva para os psicólogos do Brasil

No ano de 2020, a Campanha Janeiro Branco, voltada à promoção de uma cultura que considere mais séria e efetivamente a saúde mental, completa 7 anos. Tendo um início tímido no interior do estado de MG através de pequenas ações feitas em espaços públicos e privados da cidade de Uberlândia, a campanha ganhou em pouco tempo projeção nacional, desdobrando-se em projetos de lei e recebendo apoio de entidades diversas. Entre estas entidades, infelizmente, não está o Conselho Federal de Psicologia, órgão responsável pela profissão que, logicamente, seria a mais conectada ao tema.

Este artigo tem o objetivo de chamar atenção para tal atitude e levantar considerações sobre esta falta de apoio que, no entender de muitos psicólogos, é lamentável. Embora eu tenha o objetivo de ser sintético, buscarei ser completo e apresentar o contexto necessário à compreensão.

O IDEALIZADOR

A Campanha Janeiro Branco foi criada por um professor e psicólogo chamado Leonardo Abrahão, que vim a conhecer e de quem me tornei amigo por causa desta iniciativa.

Leonardo, nascido em Uberlândia, MG, vêm de uma família fortemente ligada o espectro político que podemos chamar de “esquerda”, tendo sido ele mesmo um estudante muito engajado com pautas sociais e que em alguns momentos – em minha opinião pessoal – se mostra “irritantemente progressista” 🙂 , dada a veemência com que critica os modelos vigentes de organização social e econômica. É, acima de tudo, um humanista, e qualquer um que o conhece sabe disso.

Imagine você o que se passa no mundo interno desse sujeito ao constatar que sua campanha está sendo tachada de elitista e, em certa medida, racista.

Você que não o conhece pode apenas imaginar, eu que o conheço, sei bem.

A CAMPANHA

A Campanha Janeiro Branco nasceu a partir de uma decisão do Leonardo de trazer o tema saúde mental para o cotidiano das pessoas, através de debates e toda ação apta a chamar atenção para o tema. A ideia era “falar do assunto” para criar – usando um termo da psicologia – “awareness” sobre a importância de olharmos para esta dimensão da vida.

A ideia é que, ao se falar disso, promover debates e fazer “barulho” sobre o tema com foco especial e fortemente simbólico no primeiro mês do ano (mas durando o ano todo) podemos começar a chamar a atenção das pessoas despertar interesse para se informarem mais. É um passo inicial na construção de uma cultura que, pelo menos, discuta o que é saúde mental, para. em algum momento, começar a buscá-la, seja no âmbito individual ou através da cobrança de políticas públicas.

A cor branca foi escolhida por simbolizar, como de fato simboliza em várias culturas e religiões de diferentes etnias, a renovação e o convite à criatividade.

A CRÍTICA DO CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA

Desde que nasceu a campanha foi olhada com pouca atenção pelo CFP, que ao tomar conhecimento, encontrou mais motivo de preocupação do que de comemoração. Alguns Conselhos Regionais até aderiram, mas o órgão máximo, a princípio, deu de ombros, tendo feito num primeiro momento um manifesto que se pauta principalmente em dois pontos. Estes pontos estão sendo reforçados em 2020 em um texto da respeitada Dra. Cynthia Ciarallo, que também é conselheira, e é sobre estes mesmos pontos – me referindo eventualmente ao artigo- que escrevo agora:

Ponto 1 – Saúde Mental como questão “estrutural”

O primeiro ponto levantado pela Dra. diz respeito à ideia de que a Saúde Mental é um tema que precisa ser tratado a partir de uma perspectiva estrutural. Isso significa dizer que é preciso se cuidar das condições básicas, não só de subsistência como também de direito, por exemplo, à educação, ao lazer, a um trabalho digno e outros mais.

Nada mais lógico que isso. É bastante elementar que condições básicas de cidadania sejam um elemento importante na construção de subjetividades saudáveis, e a campanha considera isso.

No entanto, o texto avança desconsiderando que a campanha se preocupe o com contexto, quando sugere que ela tem um caráter exclusivamente individualista – como que atribuindo toda a responsabilidade de ser saudável ao indivíduo e desconsiderando o meio.

Outra questão é que a autora parece indicar que iniciativas que não passem necessariamente por uma intervenção no sistema público, são apenas “perfumaria”. É claro que a iniciativa do indivíduo não irá resolver tudo, visto que ele está inserido em um contexto que o influencia. Mas será totalmente inócua esta disposição individual? Totalmente?

A pergunta seria: por que as coisas têm que ocupar um lado OU outro do espectro? A campanha passa sim, pelo indivíduo – embora sempre de forma coletiva- mas não se resume a ele nem o responsabiliza unicamente pela própria saúde mental. Apenas afirma que ele tem, também, algum papel nisso.

Tomemos um exemplo bobo: a indústria da alimentação é hoje estruturalmente nociva, mas isso não quer dizer que como indivíduo eu não possa me preocupar com minha alimentação, dentro do que é possível. Também não quer dizer que não devamos lutar por uma indústria estruturalmente mais saudável e honesta. Não é preciso escolher um ou outro. As pessoas não são puramente individualidade e não são puramente contexto.

Sim, há aquele que mal tem o que comer, que mora nas ruas, que é desprovido de cidadania, e devemos olhar para estes, mas isso não nos impede de olhar os demais.

Qual o problema de se atuar nas duas frentes? Uma por acaso anula a outra?

E um último adendo: em certo momento a autora parece criticar a valorização da categoria profissional de psicólogos que é subjacente à campanha, chamando de corporativismo o fato dela também orientar a procura dos profissionais quando necessário. Poxa, embora a campanha não tenha como foco direcionar as pessoas aos consultórios de psicologia, esta é uma perspectiva adicional sim. Sabemos que muita gente não pode pagar por isso – lugar das políticas públicas- mas há quem possa. E neste caso, por que não incentivar?

A ONU, inclusive, recomenda esta busca quando for possível. Política pública não precisa estar em conflito com ações privadas. E psicologia é, também, uma profissão.

Para resumir este ponto, a campanha Janeiro Branco promove espaços de reflexão sobre atitudes que se pode ter em nome de mais saúde mental, APESAR do contexto. Isso não significa, de maneira alguma, desconsiderá-lo ou deixar de lutar para melhorá-lo. Os movimentos estruturais na esfera pública feitos em nome da saúde mental são ótimos e necessários, mas isso não entra em choque com o Janeiro Branco, pelo contrário, creio que se complementam, já que através da mobilização social e do “barulho” gerado, as estruturas ao redor podem ser, mesmo que aos poucos, alteradas.

O ambiente faz as pessoas, mas as pessoas também fazem o ambiente. Além disso, as causas para problemas e falta de saúde mental são múltiplas, e se apenas estrutura social adequada fosse sinônimo de saúde mental, Japão e Suécia, entre outros, não teriam enormes taxas de suicídio.

Ponto 2 – A campanha sugere um “recorte racista”.

Sobre este ponto preciso falar com muito respeito, já que, como branco, não sofro com o racismo, que é uma realidade triste e forte no Brasil. Gostaria de propor uma pergunta:

” As coisas são o que elas foram criadas para ser, ou são o que percebemos e dizemos delas?”

O nome da campanha não teve, em momento algum, qualquer intenção de criar uma “cultura de branqueamento” como sugere a Dra. em seu texto. Em momento algum. Eu afirmo porque, como disse, conheço o idealizador, e qualquer pessoa que o conheça minimamente, sabe disso.

Como mencionado acima, a cor branca foi escolhida como simbologia de renovação. E realmente é assim em culturas do mundo inteiro, inclusive em religiões de matriz africana, já que dificilmente se vê um preto velho, por exemplo, vestido de uma cor que não seja o Branco. Eu jamais poderei dizer que é desonestidade da autora sugerir racismo na campanha, por isso apenas estou insistindo no ponto de que ela não foi criada com qualquer intenção deste tipo.

E algo mais: a autora do texto é uma reconhecida pesquisadora, altamente capacitada para observar a realidade e lidar com fatos. Não bastaria uma simples aproximação com o Leonardo, no sentido de conhecê-lo e ouvi-lo, para se chegar à uma conclusão?

Se a crítica tem embasamento acadêmico, não seria mais acadêmico se verificar uma hipótese do que tomá-la como verdadeira, quando se tem completo acesso ao fenômeno observado?

É óbvio que numa sociedade marcada pela ferida do racismo, qualquer menção da palavra “branco” pode ser suficiente para que se fique preocupado, mas não vale buscar um entendimento antes da quase completa invalidação?

E o que dizer sobre o sucesso internacional da Campanha em Angola, por exemplo? Lá, assim como aqui, a campanha também foi abraçada por centenas de psicólogos negros apaixonados pela oportunidade de levar psicoeducação às ruas. Será que a respeitada professora quer “definir como uma palavra deve ser sentida em um determinado contexto” ? Quer falar em nome dos sentimentos e da opinião dos profissionais negros que enxergaram na campanha o que nunca tinham enxergado em nenhuma outra inciativa sobre saúde mental?

Por quanto tempo mais o “fundamentalismo epistemológico” vai levar pesquisadores a categorizar a realidade em busca da adequação desta “realidade” às suas opiniões pessoais e visões de mundo?

Quem decide se há viés racista? Ela ou as centenas de psicólogos negros que aderiram ao projeto?

HIGH SCHOOL MOODS

Caminhando para o final do texto, quero chamar sua atenção para o seguinte: não há nenhum problema em o CFP ou qualquer pessoa ter uma postura crítica em relação à campanha, mas você já notou COMO o Conselho tem feito isso?

Eu te conto, e não é exagero: na base da birra e da alfinetada. A Dra. pelo menos teve uma postura crítica honesta, falando abertamente de dentro de seu viés. O CFP, nem isso. A campanha se chama Janeiro Branco, é focada, obviamente, no mês de Janeiro, e o que o CFP fez? Lançou uma imagem dizendo “De Janeiro a Janeiro, Saúde Mental importa o ano inteiro!”

Mas é um órgão de classe ou um adolescente “mordido”?

Pense comigo: a campanha já é um sucesso, reverbera inclusive em outros países, é citada em revistas sérias e emissoras de TV, e o CFP não apenas deixa de apoiar, como também “alfineta”. Com todo respeito, o órgão máximo da profissão mais ligada à saúde mental no mundo não dar suporte a uma campanha nacional sobre saúde mental, com repercussão internacional, é, no mínimo, sintomático.

RESUMO DA ÓPERA

A partir da perspectiva que busco aqui apresentar, a campanha Janeiro Branco tem grande potencial de, através da criação de um fenômeno midiático em torno do tema, promover mudanças no olhar das pessoas. Não se trata de simples perfurmaria ou corporativismo.

Estas mudanças podem se desdobrar em diversos caminhos, incluindo aí a formação de uma geração que pensará a saúde mental com muito mais propriedade, incluindo no que diz respeito a exigir políticas públicas que desemboquem em mudança estrutural.

Parece realmente haver uma leitura da autora e do Conselho Federal de Psicologia, de que a ação do indivíduo é completamente irrelevante diante de um contexto em desordem . Eu, que aqui escrevo, realmente acredito que o contexto é um enorme definidor de possibilidades, e qualquer um que acredite que uma criança nascida na Maré tem as mesmas chances na vida de uma criança nascida em Ipanema, está delirando.

Isso não quer dizer que não haja algum lugar para a e para a “autogestão” vontade individual no processo de transformação de grande parte dos brasileiros. É possível notar, inclusive, que própria autora do texto -que critica a campanha com base nesta suposta “hipervalorizarão do indivíduo”- tem uma trajetória e currículo admiráveis, sendo hoje uma profissional respeitada e conhecida. Talvez ela tenha sido alguém que nasceu com privilégios, mas se não for o caso, é sem dúvidas uma pessoa que foi capaz de se organizar a ponto de conseguir se fazer uma cidadã respeitável, apesar de todas as limitações impostas pela estrutura.

Tal perspectiva não quer dizer DE FORMA ALGUMA que devemos abandonar as pessoas às possibilidades de suas individualidades e de seu “lócus interno”, em um contexto opressor. É e sempre será preciso se intervir nas estruturas em busca de equidade social. Mas isso não está em conflito com acreditar que o indivíduo também tem recursos para se movimentar um pouco nesta equação.

Aliás, quem diz que a Campanha não compreende e não abarca a luta por direitos sociais e políticas públicas relativas à Saúde Mental, não leu, não ouviu e não entendeu nada do que o Janeiro Branco propõe em cada oportunidade em que dialoga com a sociedade. Não por acaso, um dos posts mais compartilhados da Campanha, atesta isso:

Janeiro Branco veio para SOMAR, não para dividir. Os psicólogos já perceberam isso… e seria muito, muito bom se os “donos da psicologia no Brasil” pudessem perceber também.

5 comentários:

  1. O Conselho Federal não é capaz de intervir no coletivo, vide sua inépcia em propor políticas públicas na área da saúde ou da assistência social que visem ampliar o acesso aos serviços que a categoria pode disponibilizar para a população em geral, e como se isso não bastasse, também condenam iniciativas “individuas”, ou seja, não nos apoiam em absolutamente nada. Mas sabem cobrar e nos processar quando não pagamos essa taxa abusiva cobrada todos os janeiros brancos!!!

  2. Avatar Luciana Sauer Côas Buske

    Cada vez que percebo a aversão à campanha e a aversão ao profissional liberal (pagantes deste Conselho, também) volto a perceber que este Conselho não nos representa, representa uma parcela desta classe. Acho digno o debate e considero deveras oportuno falarmos de saúde mental. Seja no espaço público (inclusive cobrando, exigindo mais ações) quanto no privado. Se não falarmos continuaremos a perpetuar tabus em relação a nossa profissão e a própria saúde mental. O simbolismo em torno do Janeiro vejo como válido, mas é óbvio que estes diálogos devem ser contínuos, ao longo do ano. Mas a campanha usou o mote de outras campanhas, dando uma cor, dando um destaque … O branco traz vários simbolismos, infelizmente no racismo foi colocado a lupa de aumento, mas seu artigo foi genial ao trazer a luz o verdadeiro sentido desta cor neste momento. Parabéns pelas palavras!

  3. Ótimo texto como sempre Bruno, com comparações lógicas entre saúde mental x políticas públicas x responsabilidase social e individual. Você foi respeitoso com a autora do texto em referência e chama para reflexão. Gostaria de colocar aqui mais uma reflexão. O ano passado tivemos a chance de escolher outros representantes no C.F.P e regionais. Vejo tanto descontentamento com o órgão e me incluo nelas. Então pq não mudamos os dirigentes quando tivemos a chance? Eu pesquisei as chapas, vi propostas, assisti debates e não votei nestes que aí estão, mas infelizmente vi muitos colegas psicólogos que reclamam, mas se quer lembraram da eleição e votaram de qualquer jeito. Infelizmente continuamos vivendo mais, do mesmo. 🤷‍♀️

  4. Avatar Luisa Soalheiro

    Bruno, comentar seus textos é tarefa quase inglória. São sempre objetivos e precisos. Mas para não dizer que não dei o meu pitaco, pense comigo. O despertar ( réveiller) do novo ano é associado a roupa branca no Brasil, certo? E de onde vêm este costume, senão da influência das religiões africanas, que usam o branco nas suas cerimônias e rituais. Esse costume que hoje copiamos, não se iniciou com os adeptos da umbanda e candomblé, que iam as praias fazer suas oferendas vestidos de branco? Por isso, o mês de de janeiro encontra o Brasil vestido de branco, com raras exceções. O branco também não está associado a uma folha de papel, onde podemos escrever uma nova história? Não seria então mais fácil fazer uma ou outra, ou as duas associações, com o janeiro branco, do que buscar interpretações ideológicas para justificar a não adesão? Isso sem entrar nas discussões de indivíduo/ contexto, porque tô com preguiça, e porque é preciso distinguir o contexto de um “pretexto”.

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